Trinta e cinco anos depois da publicação de "O Conto da Aia", Margaret Atwood se viu diante do estrondoso sucesso de sua obra, ainda mais quando o enredo ficou tão perigosamente perto da realidade do mundo atual. A pedido dos fãs, Atwood resolveu colocar no papel suas idéias do que aconteceu depois na história e, assim, surge o também brilhante "Os Testamentos". Neste post, falarei sobre isso.
Nota: Se você não leu ou não está familiarizado com o "O Conto da Aia", dê uma olhada, antes, nos posts referentes a este livro. Os links estão no final desta resenha.
"Os Testamentos" acontece quinze anos depois dos eventos de O Conto da Aia" e é narrado em primeira pessoa por três personagens: Tia Lydia, Agnes e Nicole. Todas elas estão escrevendo relatórios que só se tornam claros quando o livro termina e todas as peças do quebra-cabeça são reunidas.
A premissa deste livro é entender como as meninas nascidas sob o regime de Gilead vivem e experienciam o mundo, já que são a primeira geração de filhas de Esposas e Aias e não tem as referências que nós temos de como era o mundo antes de Gilead. Além disso, descobrimos que existem países no mundo que não foram atingidos pelo golpe religioso/militar e seguem como democracias, abrigando os refugiados que conseguem sobreviver a uma fuga de Gilead (como o Canadá, por exemplo).
Do ponto-de-vista político e social, Atwood fez um excelente trabalho, ela que é uma gênia quando se trata de ficção-especulativa. Agnes representa esta primeira geração de meninas nascidas no novo governo e demonstra o impacto que a sociedade teve em seus valores, pudores, medos, brincadeiras e emoções. Nicole, criada no Canadá por pais adotivos, é o oposto de Agnes, seja nas roupas, nos palavrões, no ateísmo e no sarcasmo. Também descobrimos um pouco mais sobre a economia e sobre as classes sociais mais baixas (Econoesposas e econohomens), que são marginalizados e esquecidos pelos Comandantes.
Li muitas críticas ao desenvolvimento de Agnes e Nicole, comparando-as com a June. Na minha opinião, não faz sentido compará-las. Primeiro, porque o arco de June é muito mais dramático, trágico e sombrio do que os arcos de Agnes e Nicole, pela própria natureza do enredo. Depois, Agnes e Nicole são adolescentes e vão amadurecendo junto com o leitor, pois nem elas entendem completamente o que acontece no mundo em que vivem. Elas não tem a mesma clareza de June, e nem é para que tenham. E se é para compararmos personagens, neste livro, a personagem principal é a Tia Lydia, assim como June foi antes.
A sensação que tive foi de que Atwood escolheu dar foco à Agnes e Nicole não só porque elas movem o enredo, mas também porque agora ela tem um público jovem que se identificaria com elas. Acho isso válido, pois quero que o legado de Atwood continue por muitas gerações. Por outro lado, acho que Atwood queria mesmo era escrever um livro só com a Tia Lydia, pois é ela quem dá profundidade, violência, crueldade e o lado sombrio que Atwood escreve magistralmente bem.
Para mim, esta obra é sobretudo uma redenção para a Tia Lydia. Desde o volume anterior, Tia Lydia é uma antagonista muito bem escrita, pois transita entre ser extremamente cruel ou surpreendentemente generosa. Aqui ficamos sabendo que Tia Lydia costumava ser uma juíza e, claro, em Gilead, nenhuma mulher pode ter uma carreira, muito menos uma carreira intelectual e poderosa como a de juíza. Ela é subjugada à Tia e é uma das Fundadoras de Gilead. Aos poucos, percebemos que ela é uma das melhores anti-heroínas já escritas na literatura e, quando o livro termina e seu destino é revelado, eu chorei. Muito.
Além disso, eu cheguei a este livro querendo saber o que acontece com June. E agora eu sei. Atwood deixa tudo implícito e é preciso que o leitor conecte os pontos por si mesmo mas, quando os tais pontos são conectados, caramba! Fiquei muito emocionada, muito, como se eu tivesse recebido notícias de uma amiga de longa data, muito querida, e mais uma vez me vi chorando.
Esta é uma história pedida pelos fãs e escrita para eles. Eu sou fã incondicional de Atwood desde os meus vinte e poucos anos (tenho 35 agora, a mesma idade de "O Conto da Aia", aliás) e fiquei muito satisfeita. E gostei, sobretudo, do final amargo e feliz. Pessoalmente não gosto de finais felizes, onde tudo se ajeita e tudo dá certo, e não é o que acontece aqui. É um desfecho positivo, sim, porém, tanta violência e tanta traição acontece que, quando a felicidade enfim chega, ela vem carregada de remorso, culpa, traumas e melancolia, daí o tom amargo. E, para mim, a vida é exatamente assim.
Conteúdo sobre Margaret Atwood é o que não falta aqui no blog. Por isso, antes de ir embora, sugiro que você navegue por eles:
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