Há momentos que uma leitura pode se tornar pura decepção e, movida por este sentimento, escrevo a resenha de hoje sobre a distopia "Vox", de Christina Dalcher.
Mas, antes, uma breve descrição sobre o livro.
Situado em uma América onde metade da população foi silenciada, "Vox" é narrado em primeira pessoa por Jean McClellan, uma neurolinguista.
No dia em que o governo decreta que as mulheres não podem falar mais de 100 palavras por dia, ela está em negação e custa a acreditar que o governo tenha adotado medidas tão extremistas.
As mulheres não poderão mais ter empregos. As meninas não são mais ensinadas a ler ou escrever. Angustiada com o futuro de sua filha, Sofia, Jean aceita um trabalho para o governo, depois da insistência de seu marido Patrick, trabalho este que ela logo percebe ter fins muito mais obscuros e cruéis do que aqueles escritos em seu contrato.
1) Jean fala muito, o tempo todo.
Eu esperava que Christina tivesse escrito um livro inteiro com uma protagonista que falasse apenas 100 palavras por dia. Como escritora, pensei: "uau, ela deve ser uma escritora incrível, eu nunca seria capaz de fazer isso". Pois bem, ela também não foi capaz. Logo no início do livro, Christina encontrou uma maneira de fazer Jean falar, assim que a protagonista aceita o trabalho para o governo. Para mim, isso pareceu um pouco preguiçoso da parte de Christina. Seria muito mais denso e dramático se Jean continuasse com a limitação da fala ao longo de todo o enredo, limitação esta tão amplamente divulgada como o ponto central do livro.
Além disso, há Sharon e Del, que foram capazes de burlar a regra do governo e fazem você pensar: mas minha gente, se eles conseguiram, qualquer um consegue. Isso também tirou completamente a "força" desta distopia.
2) Cópia descarada e mal-feita
Do começo ao fim, a história me pareceu uma tentativa bem esdrúxula de copiar (o sucesso de) "O Conto da Aia" de Margaret Atwood. Quase pude ouvir, atrás de cada cena forçada desta distopia, a empolgação dos editores de emular em "Vox" a mesma popularidade de "Aia". Para mim, o livro inteiro pareceu falso - dos personagens ao enredo. A melhor qualidade de "Aia" é parecer plausível e real, especialmente Offred. Mas aqui ... Meh.
É simplesmente inaceitável comparar este livro a Margaret Atwood. E, para corroborar este meu ponto-de-vista, deixo aqui os links explicando a grandiosidade de "Aia":
3) A escolha da protagonista errada
Jean tinha uma amiga, na época da faculdade, chamada Jackie. Jackie era politicamente ativa desde jovem e previu todos os absurdos do governo extremista e religioso. A amizade entre as duas acabou devido às divergências de pensamento, pois Jackie não conseguiu aceitar a inércia e desinteresse de Jean sobre o assunto. Nem Jackie e nem eu, para ser sincera.
Jean é um saco. Não há absolutamente nada nela que seja interessante e que justifique a escolha dela como protagonista. Christina falhou em sua construção. Jackie tem muito mais carisma e profundidade e ela sim seria capaz de carregar a história nas costas.
4) O final
Se você não quer ler spoilers sobre a obra, sugiro pular este tópico. A parte final do livro é ainda mais sofrível do que o restante dele. Os eventos se sucedem rapidamente, sem uma evolução bem concatenada. Várias personagens da trama se juntam e, como um milagre, todos são aliados de Jean na luta contra o governo. Durante toda a narrativa, há um conflito completamente irrelevante se Jean vai escolher o marido Patrick ou o amante Lorenzo (sério Christina? Um dilema assim superficial em meio a uma crise distópica mundial?) e, plim!, para evitar qualquer tipo de escolha, Christina mata Patrick e Jean segue sua vida tranquila e feliz na Itália. Acho que poucos livros me deixaram mais irritada com o final do que este. Mais uma vez, Christina foi preguiçosa.
5) O mau aproveitamento de Steven
Steven é o filho mais velho de Patrick e Jean, que tem quatro filhos. Há dois gêmeos que são completamente irrelevantes na trama e nem deveriam ter sido criados e Sonia, a menina que também não pode falar. Steven vai sendo sugado pelas idéias totalitárias e religiosas do governo, chegando ao ápice de perder o respeito pela mãe - que ele considera Impura - e denunciando a namorada por fornicação (com ele próprio, aliás). Steven faz o leitor sentir um ódio imenso, que sobe pela garganta, e os únicos momentos que gostei da leitura foram os embates entre ele e Jean.
A relação mãe e filho, antagônica e violenta, seria um ótimo caminho para a distopia. Mas, a exemplo da preguiça do restante do enredo, aqui a coisa se resolve rapidamente também: Steven se arrepende e pede perdão à mãe. Sério, Christina? Sério mesmo?
6) Zero de conexão com as personagens
Não me importei com Jean, nem com Patrick, nem com Lorenzo, muito menos com as equipes do laboratório (que trabalhavam para o governo junto com Jean). Os vilões são várias versões diferentes de Donald Trump, o que fica claro ter sido proposital, mas eles começam a soar forçados e caricatos depois de um tempo. Há coadjuvantes como Del e Sharon que poderiam ter se tornado carismáticos, mas entram e saem de cena sem grandes emoções. E, quando o leitor não se conecta, tudo fica muito entediante. Os conflitos, os diálogos, as dificuldades, as mortes, nada disso realmente importa ou prende a atenção.
Assim, meu sentimento geral é de que esta distopia foi escrita às pressas, apenas com o objetivo de surfar a onda de Atwood e colher algum lucro disto. Christina não me convenceu de que escreveu este livro com convicção. Por isso, definitivamente não é uma leitura que recomendo.
Se você quer conhecer obras deste gênero com uma pegada feminista, há opções muito mais interessantes e relevantes. Separei algumas indicações, abaixo:
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