Já Li #123 - As Sereias de Titã, de Kurt Vonnegut



A resenha de hoje é sobre "As Sereias de Titã", mais uma ficção-científica excêntrica de Kurt Vonnegut. E mesmo enquanto escrevo esta resenha, ainda não sei o que pensar deste livro, mas vamos em frente.

Eu já falei um pouquinho sobre o Kurt Vonnegut em outra resenha, Já Li #108 - Cama de Gato. E, também naquela ocasião, precisei de um tempinho para digerir tanto seu estilo de escrita quanto seu sarcasmo. De forma geral, foi uma experiência positiva, ainda que meio esquisita, e por isso decidi repetir a dose e ler mais uma obra sua. Me recomendaram "As Sereias de Titã" como uma das obras-primas de ficção-científica e eu não podia deixar isso passar.

O livro, publicado em 1959, conta a história de três protagonistas: Malachi Constant, o homem mais rico da Terra, que perde todo seu dinheiro e status; Winston Niles Rumfoord (e seu cachorro Kazak), que construiu uma espaçonave particular para explorar o universo e ficou preso em um infundíbulo cronossinclástico (explico já já que raio é isso) entre Marte, Titã (uma lua de Saturno) e a Terra; e Salo, um ser do planeta Tralfamadore que vira amigo de Rumfoord em Titã.
O tal infundíbulo cronossinclástico funciona como um buraco de minhoca. Rumfoord e Kazak estão presos em um looping eterno, onde eles se materializam em diversos pontos do universo ao mesmo tempo, permanecem ali por alguns minutos (em tempo terráqueo) e depois se desmaterializam para ressurgir em Titã. Por causa disso, Rumfoord é visto como uma espécie de Deus na Terra e chega a fundar uma religião e escrever uma Bíblia, e as pessoas montam acampamento esperando pelo momento que ele irá se materializar em nosso planeta. 
Em uma destas materializações, ele avisa a Malachi que já viu seu futuro e que ele irá a Marte, a Mercúrio, de volta a Terra e terminará seus dias em Titã, ao lado da esposa de Rumfoord. Rumfoord também conta que Malachi vai ter um filho com sua esposa e que o menino será parte fundamental do futuro da civilização (só não especifica qual).

Em sua prevista viagem para Marte, Malachi descobre que lá há um exército de seres humanos, todos eles desmemoriados e controlados por antenas, que estão sendo treinados para entrar em guerra com a Terra. Malachi, destituído de sua memória e de sua identidade, vira Arc, um dos soldados deste exército que começa a recuperar alguns fragmentos de idéias próprias e lembranças. 
O mesmo acontece à esposa de Rumfoord, Beatriz, que também perde a memória e tem um filho (via estupro, diga-se de passagem) de Malachi/Arc, chamado Cronos.

Minha primeira observação sobre este livro é que o leitor precisa suspender uma série de julgamentos, e digo isso porque, de forma geral, a história não faz sentido, se analisarmos de um ponto-de-vista racional e/ou científico. Há pessoas controladas por antenas e que conseguem respirar na atmosfera de Marte quando tomam um remédio que parece uma aspirina, há viagens espaciais em tempo recorde, referências ao Velho Testamento, há a mesma gravidade em todos os planetas e cavernas obscuras em Mercúrio. Porém, no final das contas, não importa que não faz sentido, pois Vonnegut escreve de uma forma que nos faz acreditar que tudo é possível.
Minha segunda observação é que, assim como aconteceu em "Cama de Gato", tenho a sensação de que Vonnegut quis fazer uma crítica à religião e à nossa noção de Deus. 
E, por fim, apesar de ser uma narrativa de ficção-científica no espaço sideral, não é uma spaceopera. A mim me pareceu mais uma sátira sobre a Humanidade, já que Vonnegut fala com ironia de instituições (exército, grandes corporações, bancos), relacionamentos (casamentos, amizades, sociedades, famílias) e costumes (orações, hábitos, rotinas). E, talvez não sem intenção, a personagem mais sensata e coesa de todo o livro é Salo, o E.T.

Vonnegut tem um estilo muito, muito específico, o que certamente lhe conferiu fãs ardorosos mas também pode desanimar um leitor desavisado. Ele é, ao mesmo tempo, brincalhão e um pensador sério. A história parece leve, mas tem bastante escuridão abaixo da superfície e, embora seja contada de forma alegre, é uma história sobre o desmantelamento da fé/religião como a única maneira de salvar a Humanidade. Há manipulação, memórias apagadas, estupro, amigo matador de amigos e genocídio usado para aproximar as pessoas. Há otimismo sobre sonhos destruídos e exílio de toda a sua espécie. 
E as tais sereias de Titã são uma ilusão de felicidade tanto quanto Deus e a religião.
É uma leitura que recomendo.

Avaliação do Perplexidade e Silêncio: 

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