Já Li #108 - Cama de Gato, de Kurt Vonnegut


Minha experiência com a leitura de "Cama de Gato" de Kurt Vonnegut foi, digamos, intensa. Em alguns momentos, tive a certeza de ter me deparado com um livro incrível. Em outros, senti como se Vonnegut estivesse tentando me passar uma mensagem que eu era estúpida demais para compreender. E a resenha de hoje é sobre tudo isso.

Kurt Vonnegut, falecido em 2007, teve passagens interessantes em sua vida. Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, ele e mais cinquenta soldados americanos foram capturados pelo exército alemão e foi levado para uma prisão em Dresden. Ele viveu lá por alguns meses, até que a cidade foi bombardeada pelos Estados Unidos e ele foi levado para a França, onde viveu por mais três anos até que pudesse retornar são e salvo à sua casa em Indiana, EUA. 
Essa sua experiência na guerra fez sua carreira como escritor deslanchar, com diversos artigos e contos autobiográficos sobre o tema, até que, eventualmente, ele começou a escrever ficção.

"Cama de Gato", publicado em 1963, foi, na época, seu quarto livro. Embora aborde temas como ciências e uma sociedade supostamente utópica, minha impressão é de que o ponto central da trama é uma sátira à religião.
Na abertura do livro, o narrador, um homem chamado John (mas chamando-se Jonah), descreve uma época em que planejava escrever um livro sobre o que os americanos importantes fizeram no dia em que Hiroshima foi bombardeada. Ao pesquisar esse tópico, John se envolve com os filhos do falecido Felix Hoenikker, o inventor da bomba atômica - Frank, Newton e Angela Hoenikker. John viaja para Ilium, Nova York, para entrevistar as crianças Hoenikker para seu livro.

Eu estava empolgada com a leitura, até que o foco da narrativa mudou. Em meio às pesquisas sobre Felix, Jonah descobre que o cientista, além da bomba atômica, também inventou o gelo-nove, uma substância capaz de fazer toda a água do mundo congelar, inclusive a água presente nos corpos dos seres humanos. Neste ponto, o enredo muda para o interesse de Jonah no gelo-nove e a sua viagem para o país San Lorenzo, onde, supostamente, reside Frank, um dos filhos de Felix e o único membro da família que Jonah ainda não conheceu.

Ainda estava digerindo a mudança de direção do enredo, quando Vonnegut introduz outra. Jonah fica fascinado por San Lorenzo, um país pobre, sem nenhum atrativo específico, com um sistema político e econômico de mentira e uma religião muito predominante, o Bokononismo. Quando Jonah chegam ao país, é recebido por Papa Monzano, sua linda filha adotiva Mona, e cerca de cinco mil san lorenzanos. Fica claro que Papa Monzano está extremamente doente e que pretende nomear Frank Hoenikker seu sucessor. Frank, que acha difícil conversar com as pessoas, fica desconfortável com esse acordo e entrega abruptamente a presidência a Jonah, que aceita de má vontade. Frank também sugere que John se case com Mona.

Jonah esquece seu próposito de escrever sobre Felix e fica tomado pelos conflitos existentes em San Lorenzo mas, principalmente, se apaixona por Mona. O grande problema aqui é que Mona é uma personagem feminina que beira o absurdo, e acho que Vonnegut fez isso de propósito (prefiro acreditar que sim). Ela é descrita como incrivelmente linda e sedutora mas, no fundo, é uma personagem sem sentimentos, intenções, objetivos ou reações. Mona apenas existe na história e isso basta a Jonah/Vonnegut. 

Foi neste ponto do livro que percebi que, na realidade, o tema central é a religião (Bokonomismo). Esta religião fictícia é baseada no conceito de foma, que é definido como "inverdades inofensivas". Um fundamento do bokononismo é que a religião, incluindo seus textos, é formada inteiramente de mentiras; no entanto, quem acredita e adere a essas mentiras terá paz de espírito e talvez viva uma vida boa. Os Livros do Bokonismo começam com: "Não se engane! Feche este livro de uma vez! Não é nada além de foma! Todas as coisas verdadeiras que estou prestes a lhe contar são mentiras descaradas." O princípio principal do bokononismo é "viver de acordo com a foma que o faz corajoso, gentil, saudável e feliz".
Jonah, mesmo sabendo que todos os princípios são mentiras inventadas pelos dois "fundadores" de San Lorenzo, gradativamente se vê acreditando em tudo. A princípio, de forma cínica e sarcástica mas, ao longo do livro, ele se torna mais e mais fiel às crenças.

Por isso mencionei na abertura do post que tive sentimentos bem conflitantes em relação a este livro. A mudança de foco do tema me incomodou muito e eu fiquei sem saber o que esperar ou a quem me vincular na narrativa. Mas, depois que acostumei com isso, a leitura fluiu e fiquei intrigada para saber o que viria a seguir. Na parte final do livro, Vonnegut retoma o gelo-nove, que parecia ter sido esquecido pelo autor até então, e nos deparamos com um apocalise, no mínimo, esquisito.

Vonnegut escreve com ironia e sarcasmo, o que é bem agradável. Há personagens estereotipadas (americanos, turistas, cientistas) mas ele os escreve de uma forma muito interessante e crítica. Vonnegut não se preocupa em ser politicamente correto em nenhum momento. E seu estilo de escrita é direto e seco. Por isso, é uma leitura que recomendo.

Avaliação do Perplexidade e Silêncio: 

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