O post da sessão Literatura de Res-Peito de hoje traz uma obra de ficção-científica para fritar os neurônios. "The Female Man" é a resposta de Joanna Russ ao livro de Ursula K. Le Guin "A Mão Esquerda da Escuridão". Qualquer pessoa que tenha peito para bater de frente com a titia Ursula merece minha atenção.
Joanna Russ, falecida em 2011, foi uma feminista declaradamente radical. Em 1983, ela escreveu um livro chamado "Como reprimir a literatura feminina" onde, com muito sarcasmo e humor negro, mostrou evidências de que as mulheres não tinham espaço e nem reconhecimento no universo literário, e menos ainda na ficção-científica. Nos anos 60, ela já começou a se destacar no gênero como uma das poucas mulheres a escrever scifi, ao lado de Ursula K. Le Guin.
Seu estilo de escrita é raivoso e irônico e Joanna não deixa margem para interpretações. Seu posicionamento radical em relação ao patriarcado (e aos homens) é explícito em suas obras, sejam elas ficcionais ou não. Suas críticas literárias estão entre as mais severas e duras até os dias de hoje.
"The Female Man", ainda sem tradução para o português, foi publicado em 1975. O livro conta sobre a vida de quatro mulheres que vivem em mundos paralelos, em diferentes tempos, épocas e lugares do Universo. Quando cruzam o mundo uma da outra, suas diferentes visões sobre os papéis de gênero surpreendem as noções preexistentes de feminilidade. Estes encontros as influenciam a avaliar suas vidas e moldar suas ideias sobre o que significa ser mulher. As quatro mulheres são:
Joanna, anos 70, Terra em um mundo paralelo:
O título do livro referencia Joanna, uma destas quatro mulheres que foi propositalmente escrita para reproduzir o ponto-de-vista da própria autora. Joanna, a personagem, acredita que a mulher deve ser "masculina" para mostrar à sociedade que a divisão de gêneros é uma bobagem. Contudo, achei que ela passa uma mensagem muito ambígua, pois me pareceu que Joanna tinha vergonha de ser mulher. Em vez se ela representar a luta feroz pela igualdade de gêneros, Joanna apenas demonstrou raiva e amargura. Confesso que me decepcionei um pouco com esta personagem.
Jeannine Dadier, uma Terra onde a Grande Depressão não acabou e Hitler morreu antes de começar a Segunda Guerra Mundial:
Jeannine representa os ideais de uma sociedade patriarcal. Bibliotecária, ela se sente inferior e frustrada porque já passou dos 27 anos e ainda não se casou. Eventualmente, ela questiona se realmenteserá feliz formando uma família, mas sua mãe, irmão e chefe a pressionam diariamente "para arrumar um marido e resolver seus problemas". De longe a personagem mais legal deste livro, Jeannine é quem possui o arco mais completo e interessante do enredo. A cada passagem em que ela aparece e a cada interação com as mulheres dos outros mundos, pouco a pouco, Jeannie se liberta das expectativas da sociedade e encontra sua essência no movimento feminista.
Janet Evason Belin, da futura Whileaway
Janet vem do futuro de um planeta utópico onde uma praga matou todos os homens há 800 anos, uma plot similar a "Herland - A Terra das Mulheres" de Charlotte Perkins Gilman. Janet interage bastante com Jeannine, questionando a todo momento suas escolhas e opiniões e é a figura central que provoca em Jeannine suas reflexões e mudança de comportamento. Ao longo do livro, Janet deixa implícito que não foi bem uma praga que exterminou os homens, e sim, um evento biológico causado com o propósito de exterminá-los.
Alice Jael Reasoner, vive numa dimensão paralela onde homens e mulheres disputam uma Guerra Mundial
Para ser sincera, não entendi muito bem o papel de Jael no enredo. Ela não se encontra efetivamente com nenhuma das personagens e aparece como uma "voz" ou como um "fantasma", mais narrando os eventos do que participando deles. Ela também instiga nas personagens que também comecem uma guerra contra os homens de seus mundos.
Como ficção-científica, o livro é ótimo, sobretudo a sociedade utópica de Whileaway e as explicações para os mundos paralelos. Russ foi bastante imaginativa e criou um sistema que funciona e convence. Além disso, ela descarta a tecnologia como ponto de ruptura das sociedades do futuro e propõe economias agrárias, o que é atípico de se encontrar em scifi.
Já como obra feminista, terminei de ler o livro com sentimentos divididos. Uma parte minha não gostou do tema de ódio que permeia as discussões. Acredito que toda posição radical é perigosa à sociedade e incita emoções que podem atrapalhar o desenvolvimento de uma evolução. Pessoalmente, não sou a favor deste tipo de abordagem para nenhum movimento, nem para o feminismo.
Outra parte minha gostou da mensagem transmitida por Jeannine. Na minha opinião, o livro poderia ter sido apenas sobre ela, uma personagem feminina interessante, profunda e que promove ação e dinamismo à estória.
Ainda assim, é uma leitura que recomendo.
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