O desafio Literatura de Res-Peito tem como objetivo falar de livros com um forte protagonismo feminino, escritos por mulheres à frente de seu tempo e que tratem de assuntos polêmicos, feministas e importantes para a evolução do papel da mulher na sociedade. Hoje, o livro participante do desafio é "Kindred: Laços de Sangue" de Octavia E. Butler.
Nascida na Califórnia e criada pela mãe viúva, Octavia E. Butler gostava de passar o dia na biblioteca, lendo fantasia, o que a levou, depois de algum tempo, a estudar e escrever ficção-científica.
Na época em que viveu, os Estados Unidos eram radicalmente segregados pelo racismo, mas Octavia cresceu numa comunidade onde tal segregação não acontecia como no restante do país, o que permitiu que ela conhecesse pessoas de diferentes etnias.
Seu sucesso maior foi com o livro "Kindred: Laços de Sangue", publicado originalmente em 1979 e que mistura ficção-científica - viagem no tempo, mais precisamente - com narrativas de escravidão. Quem acompanha o blog sabe que sou fascinada pelo tema de viagem no tempo mas, em "Kindred", este é apenas um elemento em segundo plano.
Começando pelo título, a palavra kindred significa o parentesco universal que conecta todos os americanos, independente da etnia, e que vem sendo negado ao longo dos séculos por causa do racismo.
O livro é narrado em primeira pessoa pela protagonista Dana. Ao completar 26 anos de idade (em 9 de junho de 1979), ela sente uma forte tontura e, ao acordar, se vê em um lugar completamente desconhecido que, mais adiante, sabemos que se trata do período escravocrata americano, no final do século 18.
Ao acordar neste lugar/tempo estranho, Dana é atraída pelos gritos de um menino que está morrengo afogado no rio e ela salva sua vida, apesar dos protestos da mãe do menino e da ameaça de violência do pai dele.
Quando ela retorna ao seu próprio tempo, seu marido Kevin diz que ela ficou desaparecida por apenas alguns segundos, mas no "mundo" de Dana se passaram vários minutos.
Dali em diante, Dana retorna algumas vezes ao passado e, num dado momento, ela compreende que viaja no tempo quando Rufus, o menino que se afogou no rio, está sofrendo risco de vida. Na teoria formulada por Octavia, isso acontece porque Rufus é seu ancestral, e irá gerar com a escrava Alice os tataravós de Dana. Ou seja, em linhas gerais, o conflito do livro é: Dana não pode deixar Rufus morrer porque, se ele morrer, ela não irá nascer. Mas a questão é que o Rufus, em vários momentos da narrtiva, merece morrer, o que deixa Dana num impasse.
O enredo, em si, não prendeu muito da minha atenção. Primeiro, porque o elemento de viagem no tempo me pareceu jogado na trama, sem maiores explicações, como uma resposta simplista demais para Dana retornar ao passado escravagista de sua família. Depois, porque o marido de Dana, Kevin, é completamente irrelevante na trama e, por isso, nem precisava existir. E, por último, porque não há clímax na estória - o conflito entre Dana e Rufus se repete a cada capítulo, sem grandes evoluções ou surpresas.
Porém, este livro não estaria no Desafio Literatura de Res-Peito à toa. Assim, os principais pontos, na minha opinião, são:
Representação realista das comunidades escravagistas: Este livro deveria ser leitura obrigatória nas escolas americanas. Octavia não poupa detalhes para explicar como a escravidão funcionava e, o que mais gostei na forma como ela escreve, é que ela insere fatos cotidianos que seriam totalmente comuns se não fosse pela escravidão - como, por exemplo, a cena de um jantar em família ou uma cerimônia de casamento. Estes eventos ordinários ganharam peso e forma e, para mim, foram muito ilustrativos de uma realidade que eu jamais serei capaz de alcançar em sua totalidade.
O conflito da visão moderna da mulher: Dana é uma mulher muito moderna para a sua época (lembrando que o livro foi publicado no final dos anos 70) e é muito interessante ver o choque de realidade entre ela e as escravas. Na minha opinião, Octavia deveria ter explorado mais este ponto da estória, em vez da relação ambígua entre Dana e Rufus.
Cada escravo em sua individualidade: Octavia fez um brilhante trabalho ao fazer com que nós, leitores, nos apeguemos aos escravos. Senti pena de Alice, que é obrigada a ser estuprada por Rufus e lhe gerar quatro filhos, pois não consegue fugir. Gostei de Carrie, com sua presença silenciosa e fiel na casa grande. Torci por Nigel, que queria estudar e aprender sobre o mundo. Esta humanização de cada personagem foi essencial para que sentíssemos o peso horroroso da escravidão na alma daquelas pessoas.
É uma leitura que preenche muitas lacunas na visão de mundo e me fez refletir sobre vários aspectos da nossa sociedade atual, como ainda são reflexo deste passado cruel. E por este livro permitir tantas discussões, eu super recomendo sua leitura.
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