Gina Ballerina |
* Trilha sonora do post: Home - Parlor Hawk*
Bati na porta suavemente, com receio de incomodá-la. Não sabia se ela estava ocupada e se poderia me receber naquele momento. Alguns segundos depois, uma voz baixa e delicada disse:
- Pode entrar.
Entrei. Ela estava sentada no chão escuro de madeira antiga, as pernas cruzadas como uma criança, curvada sobre uma caixa. A sala tinha janelas grandes em duas paredes, e as outras estavam cobertas de retratos, dos mais variados tamanhos e formatos, com molduras empoeiradas e gastas pelo tempo.
Saudade era uma mulher pequena e frágil, pálida das horas perdidas ali naquele cômodo, com mãos de dedos longos e finos e ombros ossudos. Tinha olhos azuis líquidos e transparentes, parecendo tão velhos quanto alguns de seus retratos.
Não havia cadeiras, logo, me sentei ao seu lado no chão. Sem me dirigir palavra, empurrou a caixa na minha direção, colocando-a bem próxima dos meus pés. Instintivamente, comecei a manusear e ler todos os objetos que haviam ali dentro:
Cartas amareladas e com as letras já borradas, pedacinhos de plantas e de flores (pois sim, tenho o hábito de guardar flores e folhas que recolho em dias especiais), fotos, fotos rasgadas, fotos meio queimadas, canetas gastas, fitas de tecido, pérolas avulsas, ingressos, passagens. Tudo o que estava ali dizia respeito a mim, à minha vida e à minha história, e fiquei imersa em recordações sem fim.
Por quanto tempo? Não sei dizer.
Saudade me esperou pacientemente, observando comigo cada item que surgia, acariciando meus cabelos quando lágrimas apontavam nos meus olhos, pegando na minha mão quando o momento que vinha era difícil demais. Ela estava ali, fazendo o seu magnífico trabalho, de me encher inteira de melancolia e felicidade-envelhecida.
Levantei e andei em círculos pela sala dela. Olhei pela janela esperando que alguém viesse me buscar, pois me sentia sufocada por uma tristeza molinha e azul clara. Ninguém veio. As tábuas de madeira rangiam sob meus pés e, sem perceber, comecei a dar passos com as pontas dos dedos.
Em cada retrato, havia um rosto conhecido. Alguns rostos em específico repetiam-se, apareciam em diversos quadros, e logo percebi que aquelas pessoas eram as que faziam mais falta. Meu coração deu um nó aqui dentro e Saudade pareceu notar, pois ergueu o olhar para mim no exato instante.
- Por que você veio me procurar?, perguntou ela.
Mal lembrava que era eu que tinha ido até ela. Tão imersa que fiquei naqueles sentimentos, parecia que eu estava ali desde sempre, andando de um lado para o outro.
- Porque precisava sentir alguém mais perto de mim. E imaginei que encontraria esta pessoa aqui.
- Ah, sim, aqui ficam todas as pessoas que você tiver vontade de encontrar.
- Mas gostaria de encontrá-la fisicamente. Tocar, ouvir a voz, abraçar.
Ela nada disse. Seus olhos azuis grandes transmitiram um pesar e uma tristeza tão profundos que entendi o recado que eles me diziam: não há nada o que se possa fazer.
Resignada, voltei a sentar no chão ao seu lado, e perguntei:
- Você tem mais caixas?
- Se você tiver coragem de vê-las, sim, tenho. Todas as caixas da sua vida.
Me alonguei e esperei pelas outras caixas.
Afinal, quando você encontra a Saudade, não há como fugir.
1 Comments
Oi, Ruh!
ResponderExcluirAmei, amei, amei! <3 Nunca parei para pensar como seria um sentimento transfigurado de uma imagem humana. Não sei se a sua imagem da Saudade seria a mesma que a minha. Achei a sua Saudade tão obscura, não sei. E eu penso nela de forma completamente oposta. Você a fez parecer frágil, e a minha visão sobre ela é de alguém muito vivo e colorido, alguém forte, que te pega no colo a qualquer momento. Mas eu entendi que, com essa sua Saudade, você quis transparecer o lado sofrido de se conviver com esse sentimento. Como sempre, sua escrita é delicada e muito profunda. Sempre que leio seus textos me sinto inundada com suas palavras e com as emoções com as quais você as escreveu. Raramente escritores têm esse poder sobre mim, e você o faz. Sinto-me muito agradecida por poder ler seus textos e sentir tudo o que você sente, pois me identifico muito com suas emoções. Podemos estar a quilômetros de distância, mas sempre que venho aqui, sinto-me ao seu lado, como se estivesse olhando pra você e percebendo todos os sentimentos contidos nos textos no seu rosto. Só posso lhe dar os parabéns pela forma impecável e incrível com a qual consegue expressar quem é.
Love, Nina.
http://ninaeuma.blogspot.com/