Não, esta carta não chegará a você. Porque se tenho que explicar o que sinto, e como sinto, então cria-se ainda mais uma distância entre nós - se você tivesse vivido ao meu lado, eu apenas te olharia, e então você saberia.
Mas você não esteve por aqui. A sua ausência é infinita: a sinto sempre neste vácuo onde cresci, porque fui forjada do vazio, do silêncio e da distância.
Recolhi os pedacinhos de mim e tentei fazer o melhor que pude em meio à bagunça, ao caos, à sujeira e à danação. Aprendi desde cedo como o ser humano pode ser egoísta, desordenado, louco e perigoso. Como acreditar nas pessoas se você, de quem fui feita, foi capaz de me abandonar? Lutei diariamente para não assumir que o resto do mundo seria daquele mesmo jeito que o meu, assim como luto - até hoje - diariamente - para não acreditar que fui merecedora do abandono.
Porque, se você tivesse visto, saberia que me convenci, ao longo dos anos, que eu era digna somente de desamor e de ausência. Que me convenci que não era boa o suficiente para ser escolhida entre as opções da sua vida. E se você tivesse visto, saberia que existem marcas que ficam - mais do que ficam: me construíram no que sou hoje. Sobrevivi anos em meio ao silêncio e à solidão, e
doía bastante. Doía de achar que eu seria capaz de morrer daquilo. Apareceria
nos jornais que houve uma morte misteriosa no bairro, morte-de-causa-nenhuma,
como se fosse um capricho, ou mesmo uma grande futilidade da pessoa que morreu.
Não digo tudo. Não penso tudo. Não sinto tudo.
Apesar de possuir um instinto de sobrevivência decadente, há ainda algum mecanismo de
defesa por aqui. Eu e ele – o mecanismo – convivemos em harmonia, cada um
ignorando a presença do outro. Sou grande por dentro, cada qual fica em seu
canto, e fechamos as portas dos quartos. Não sou articulada nem organizada o bastante para ajeitar você dentro de mim.
Já tentei ressignificar nossa história. Já tentei requalificar você. Mas, sejamos honestos, são esforços antecipadamente sabidos como inúteis. O estrago foi feito, e eu me formei a partir dele - não há como voltar no tempo.
Me escute entoar palavras vazias de votos de Felicidades. Não que eu te deseje mal - esse é o ponto: não sou capaz nem de sentir-lhe raiva. É só um espaço não preenchido da minha história.
Não sou uma linha escrita a lápis, que pode ser apagada e refeita: sou o que sou, e dentro do que sou, você não existe.
E nem sequer peço desculpas por isso.
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