Sugestão de Leitura | Nós, de Yevgeny Zamyatin


Qualquer livro que mencione distopias, automaticamente, desperta meu interesse. E, a cada dia que passa e quanto mais perto estamos do futuro imaginado pelos escritores do gênero, mais percebemos como certos absurdos de nossa vida real estão muito próximos destes mundos distópicos. Assim, foi com um enorme prazer que li a primeira distopia escrita, "Nós" de Yevgeny Zamyatin.

Yevgeny Zamyatin, russo, morreu em 1937. Em seus 53 anos de vida, Zamyatin causou tantos transtornos e distúrbios que a polícia e o Governo russo da época (União Soviética, ainda) o impediram de continuar escrevendo. Ele chegou a apelar a Stálin para poder exercer a profissão e, como não a obteve, pediu para ser exilado da União Soviética. Assim, ele foi viver em Paris, onde faleceu por problemas de inanição causados pela sua extrema pobreza. 

Ele também foi engenheiro naval, foi preso na Revolução Russa de 1905 e mandado para a Sibéria, de onde fugiu. Ele viveu ilegalmente na Finlândia para poder terminar seus estudos. Foi preso e exilado uma segunda vez, 13 anos depois da primeira. Contribuía com jornais marxistas e morou, a trabalho, na Inglaterra. Com esta vida agitada, não é estranho que ele tenha escrito a primeira distopia, "Nós".

O cenário de "Nós" é o futuro do século 26. Nesta sociedade, os indivíduos foram despojados de suas identidades, sentimentos e nomes e, por isso, o protagonista da estória é D-503. Todos os edifícios são feitos de vidro, assim como os móveis e utensílios, e os indivíduos tem horas determinadas pelo Governo (chamado de Estado Único) para passear, comer, dormir e fazer sexo. O sexo também é regulamentado, através dos Talões Rosa, e é preciso registrar-se e ser selecionado para ter um(a) parceiro(a) sexual. Não é permitido morar com outras pessoas e não há a noção de família nesta sociedade. Todo o comportamento dos indivíduos é baseado em lógica e raciocínio matemático.

O Estado Único acredita que a única forma de obter felicidade é através da proibição à liberdade. Liberdade leva o indivíduo a escolher, refletir e decidir, o que gera angústia e sofrimento. Por isso, o Estado Único faz todas as decisões pelos indivíduos e, assim, garante que eles sejam felizes. Depois de ter dominado toda a Terra, o Estado Único quer conquistar outros planetas e, para isso, organiza um time de engenheiros que construirá a nave espacial Integral. O líder deste time é D-503.

D-503 tem uma parceira sexual designada, O-90, que também é a parceira do amigo mais próximo do protagonista, R-13. R-13 é poeta, e a poesia é a única forma de arte permitida pelo Estado Único, por ser métrica, exata e contida. No entanto, os poetas podem apenas escrever odes ao Estado Único e ao Benfeitor, que seria o presidente. Em paralelo, D-503 conhece I-330 e, a partir daí, começa o conflito do enredo.

I-330 consegue uma designação formal para ser a parceira de D-503. Porém, quando eles se encontram nas horas determinadas, I-330 não deseja fazer sexo, e sim, contar para D-503 como é vida além do Muro Verde. O Muro determina os limites da sociedade do Estado Único e ninguém tem permissão para saber o que tem do outro lado dele. I-330 também fuma e bebe, duas atividades que são consideradas criminosas. D-503 fica encantado por ela e completamente aturdido pelos sentimentos novos e intensos, acostumado que está à vida rotineira e regrada. D-503 fica "cego de amor" e não percebe que I-330 só está interessado nele por causa da nave Integral.

I-330 e D-503 começam a se encontrar clandestinamente na Casa Antiga, um museu que preserva como eram as casas e a vida doméstica do passado (que seria equivalente à época de Zamyatin). Aos poucos, D-503 percebe que I-330 tem um relacionamento íntimo com vários indivíduos e começa a ficar enlouquecido de ciúmes. Isso o distancia ainda mais de perceber quais são os reais planos de I-330. Em paralelo, D-503 começa a sonhar, o que também é considerado um crime.

Com o tempo, o leitor descobre que o Estado Único está construindo uma máquina que fará uma lobotomia em todos os indivíduos, retirando deles as partes do cérebro responsáveis pela imaginação e pelos sentimentos. I-330 luta na Resistência clandestina e precisa da Integral para acabar com os planos do Benfeitor. No entanto, D-503 não tem uma opinião formada sobre o assunto, ora apoiando o Estado Único, ora desejando fugir.


O livro é organizado em capítulos curtos e dinâmicos. Cada capítulo é uma página que D-503 escreveu em seu diário, pois uma das suas responsabilidades como líder dos engenheiros é escrever um manual para os seres extraterrestres, explicando a eles os benefícios do Estado Único. Por isso, existem muitas passagens da estória que são filosóficas e reflexivas, retratando os pensamentos de D-503 diante dos acontecimentos. Desta forma, tudo o que acontece no livro é visto do ponto-de-vista de D-503, o que torna I-330 uma figura extremamente misteriosa.

Uma outra sacada genial de Zamyatin foi explicar os sentimentos das personagens através de formas geométricas e conceitos matemáticos. Afinal, no mundo de D-503 não existem definições de amor e medo, tristeza e alegria, paixão e sofrimento. Ele vive em uma sociedade lógica e, como consequência, não sabe nomear o que sente. Fica a cargo do leitor compreender os simbolismos da narrativa para se aproximar dos sentimentos de D-503. 

Tempos atrás, escrevi um post com as minhas 5 distopias preferidas. Não tenho dúvidas de que "Nós" é minha favorita, tanto pela ousadia de Zamyatin em escrevê-la na época, quanto por ter sido a Mãe de todas as distopias. Recomento muitíssimo a leitura!

Avaliação do Perplexidade e Silêncio: 

0 Comments