Já Li #155 - Minha Sombria Vanessa, de Kate Elizabeth Russell

 


Taí um livro que não sei direito o que pensar. Parte de mim achou a abordagem dele desnecessária, parte de mim achou uma história de ficção bem escrita, e outra parte de mim ficou com raiva da romantização do abuso. Hoje, vamos falar um pouco de "Minha Sombria Vanessa", escrito por Kate Elizabeth Russell. (Cuidado, pessoal, a história pode despertar gatilhos relacionados a relacionamentos abusivos.)

"Minha Sombria Vanessa", publicado em 2020, conta a história de Vanessa que, no Ensino Médio, se apaixona pelo seu professor de literatura Jacob Strane. O livro alterna flashbacks do passado (2000), contando como o relacionamento entre os dois começou e se desenrolou, com a narrativa do tempo presente (2017) e os impactos psicológicos e emocionais que este relacionamento teve na vida de ambos.

Existem dois panos de fundo na narrativa. Um deles é o livro "Lolita" de Vladimir Nabokov que, não à toa, é o livro preferido de Vanessa e onde ela busca refúgio e consolo para entender o que aconteceu com Jabob. A narrativa traz trechos e citações de Lolita sobretudo nos flashbacks, como forma de justificar (para o leitor? para a própria escritora? para Vanessa?) a atração tóxica e esquisita que existe entre aluna e professor.
Um segundo tema do livro é Movimento #MeToo, e a "onda" de denúncias de abuso sexual por parte de mulheres ao redor do mundo contra homens brancos e em situação de poder. No tempo presente, Jacob é denunciado por uma de suas alunas, Taylor, e rapidamente o caso ganha uma enorme cobertura na mídia. Ele teme que Vanessa vá a público prestar testemunho do que aconteceu com eles no passado, o que seria o depoimento final para colocá-lo na cadeia.

Que livro indigesto. 
Primeiro, porque passei o livro inteiro esperando por alguma contextualização do background de Vanessa para entender porque ela se deixou levar por um relacionamento abuso aos 14 anos de idade. A única explicação que Russell fornece é que Vanessa era solitária e isolada de todos, e que a atenção do professor a fez sentir-se especial. Sério mesmo, Russell, que é assim que você acha que o psicológico de uma mulher/garota funciona, nesse nível de superficialidade? OK.
A não ser que Russell tenha tentado transmitir a mensagem de que qualquer pessoa está sujeita a passar por algo assim, e que deveríamos sentir empatia por Vanessa, algo do tipo "abuso pode acontecer com qualquer um, fique esperto".

Outra coisa que achei meio difícil de engolir é a subplot com a melhor amiga, que a abandona quando começa a namorar. Não entendi o que isso adicionou ao enredo, eu particularmente acho que nada. Não faria diferença para a história se Russell tivesse cortado estas partes. Inclusive, seria muito mais interessante se, por exemplo, a melhor amiga fosse a Taylor jovem, e anos depois Vanessa descobre que Jacob se relacionava com as duas ao mesmo tempo. 
Outras coisas desnecessárias: Henry e Vanessa adotando um cachorro. Não, Russell, eu não acredito que você deixa a mensagem de que Vanessa vai superar anos de trauma com um cachorro. 

Mas o principal problema da minha indigestão é a romantização do abuso e dos estupros. Gente. Mal consigo escrever sobre isso nesta resenha, me desperta todo tipo de gatilho. Vanessa não percebe que foi abusada e estuprada e passa o livro inteiro dizendo que "também queria", "que Jacob não a forçou a nada", "que ele era carinhoso e preocupado com o bem-estar dela". E literalmente todo mundo que aparece no livro (fora o "casal") só tem essa função de dizer a ela que ela foi sim violentada.
As cenas de estupro me deram ânsia de vômito, sobretudo pelo fato de que elas foram romantizadas ao ponto de quase passarem despercebidas.
Eu entendo que Russell quis contar a história do ponto-de-vista da Vanessa que, provavelmente, romantizou a coisa toda como forma de se proteger de um colapso mental e emocional. Sou psicóloga, entendo isso, um baita mecanismo de defesa que prejudicou toda a vida de Vanessa e a impediu de funcionar na sociedade e na vida. Mas, ainda assim, acho tão perigoso escrever um livro desta forma.
Me pergunto se Russell foi responsável ao escrever um livro com este ângulo. Talvez existam leitores que achem que isso não é nada demais, afinal, é só uma obra de ficção, mas eu acredito que temos que tomar cuidado com assuntos tão delicados como este. 

O que conecta com outra coisa que me incomodou. Quando Russell aborda as denúncias de abuso sexual na perspectiva de Jacob, ela coloca as mulheres como malucas e mentirosas, coisas que Jacob falaria para se livrar da cadeia. Porém, quando ela escreve o ponto-de-vista das mulheres acusadas e jornalistas, ela também as descreve como loucas. Mas de que porra de lado você está, Russell? Não consegui engolir isso.

Por exemplo, se um escritor vai falar sobre transtornos mentais, cognitivos ou racismo, ele tem que ter um mínimo de consciência sobre o impacto negativo que pode causar às pessoas na vida real. E eu acho que Russell passou longe de tratar o assunto com o cuidado que deveria.

O leitor deveria receber duas versões da história, um capítulo de Vanessa e um capítulo de Taylor. Aí sim seria uma obra de ficção interessante de ler e que, ao meu tempo, entende o tamanho do assunto que está tratando.

Por isso, não é uma leitura que eu recomendo. Não mesmo.
Avaliação do Perplexidade e Silêncio: 1/5

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