Saindo das ficções-científicas famosas, "A Noite dos Tempos" de René Barjavel foi uma agradável surpresa. Misturando tecnologia, crítica à sociedade atual e estória de amor, o livro acabou conquistando o espaço de Sugestão de Leitura do mês.
Atribui-se à René o paradoxo principal de viagens no tempo, quando o viajante altera algo significativo em seu passado, provocando rupturas e inconsistências em todas as linhas de tempo derivadas. René foi o primeiro escritor de ficção-científica a abordar profundamente o assunto e chamou este paradoxo de grandfather paradox (Se você voltar no tempo e matar seu avô para evitar que você nasça, como você seria capaz de voltar no tempo para matar seu avô?). Embora não muito conhecido do grande público, René tem uma série de obras muito relevantes no gênero e vale a pena conhecê-las!
"A Noite dos Tempos" foi publicado em 1968 e conta a estória de uma expedição francesa na Antártida. Abaixo de quilômetros de geleiras e água, a expedição encontra uma cápsula de ouro com dois seres humanos congelados dentro, datados de 900 mil anos atrás, ou seja, "na noite dos tempos", como sugere um dos cientistas da expedição.
Dentro da cápsula, há um homem e uma mulher. Os eventos são narrados pelo Dr. Simon, que não esconde que se apaixonou pela mulher. Ambos estão nus e mantidos por um complexo sistema de sobrevivência e são mantidos vivos através de uma máscara de ouro. O interior da cápsula é mantido em um frio abaixo do ponto de congelamento, o que dificulta ainda mais seu acesso. Aos poucos, diversos especialistas de vários países são adicionados à expedição, com o objetivo de resgatar com vida os dois seres humanos.
A expedição, liderada pela UNESCO, logo se vê diante de uma batalha global pelos direitos sobre os dois seres. Os governos começam a interferir, querendo obter privilégios e vantagens de uma descoberta capaz de mudar, para sempre, os rumos da Humanidade. Os cientistas logo se posicionam como neutros e decidem não vincular suas pesquisas a nenhum país, e passam a divulgar, gratuitamente, ao vivo e para todo o mundo, todo o andamento das operações.
O primeiro dilema da expedição é decidir qual dos dois seres humanos deveriam acordar primeiro, pois este correria mais riscos de morrer, afinal, nenhum cientista sabia o que estava fazendo naquelas circunstâncias absurdas. Depois de muito debate, eles optam pela mulher - opção acompanhada de uma justificativa misógina: o homem era mais importante e não podiam correr riscos com ele.
"Assim, enquanto a opinião pública se apaixonava, enquanto a metade masculina e a metade feminina da humanidade investiam uma contra a outra, as disputas estouravam em todas as famílias, entre todos os casais, entre os colegiais e estudantes que se entregavam a discussões ferozes, os seis reanimadores decidiram começar pela mulher." (A Noite dos Tempos, de René Barjavel)
Quando a mulher acorda, os cientistas se vêem diante da dificuldade de comunicação com ela. Ela faz pedidos e perguntas que não são compreendidos por ninguém. Dr. Simon, já apaixonado por ela (apenas por causa de sua beleza) se propõe a construir um mecanismo de tradução simultânea e, quando este é concluído depois dos esforços dos melhores profissionais do mundo, sabemos que a mulher chama-se Eléa e se alimenta através de uma máquina.
A descoberta da máquina cria um novo conflito mundial, pois promete acabar com a fome do mundo: a máquina extrai energia do Universo, transformando-a em esferas comestíveis que provêm todas as necessidades de nutrição de um organismo. Eléa é pressionada a explicar o funcionamento da máquina e da energia universal, mas diz que somente o homem, chamado Coban, sabe. Enquanto os cientistas aceleram o processo de descongelamento de Coban, Eléa começa a relatar como era a vida há 900 mil anos.
Assim, Eléa conta que os indivíduos de sua época habitavam uma Lua e que cada indivíduo estava designado a passar o resto de sua vida com sua "outra metade", definida no nascimento através de exames genéticos, biológicos e morfológicos. Quando a "outra metade" do indivíduo era encontrada, ambos deveriam permanecer juntos, de preferência em uma relação amorosa que gerasse filhos. Eléa fora designada a Paikan, com quem viveu um romance intenso e profundo.
"— Nem todo o mundo é capaz de ser feliz. Há casais que, simplesmente, não são infelizes. Há aqueles que são felizes e os que são muito felizes. E há alguns que a Designação obteve um sucesso absoluto, e cuja união parece ter começado no início da vida do mundo. Para estes, a palavra felicidade não é suficiente." (A Noite dos Tempos, de René Barjavel)
Eléa também conta sobre a guerra da Lua, dividida entre duas facções (gonda e enisores) que começaram uma guerra que terminou por destruí-la. Coban, o maior cientista de sua sociedade, foi o criador da fórmula capaz de transformar a energia universal em alimento e, por isso, foi escolhido para ser congelado e perpetuar a sociedade na Terra. Eléa era uma das cinco mulheres escolhidas para o congelamento mas, como as outras quatro mulheres ficaram indisponíveis (por diversos motivos), sobrou apenas ela, que se viu separada para sempre de Paikan.
Barjavel adiciona algumas extrapolações, como Marte ser habitada por seres negros que, posteriormente, teriam vindo para a Terra e iniciado a raça negra aqui. Além disso, a tecnologia futurista inventada por ele é muito criativa e empolgante. A melhor parte da estória é o plot twist no final. Não entrarei em detalhes pois não quero estragar a narrativa com spoilers, mas Barjavel me conquistou com o trecho final do enredo. Inesperado e dramático, foi o ápice perfeito para uma estória muito bem escrita. É uma leitura de ficção-científica que recomendo bastante.
2 Comments
Gostei bastante desse livro, tb li em 2017. Senti que ele inspirou o cenário de filmes q vieram muito depois, como a.i. do spielberg.
ResponderExcluirEu quero muito entender o final. Entrei nessa pagina achando que a autora explicaria o final, mas não foi o caso. Se alguém entendeu e puder me explicar, fico esperando.
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