- Vem. Acho que você está pronta. - ele estendeu a mão por sobre o céu azul. E ela imóvel e indecifrável, até mesmo com cara de boba.
- Vem, menina, você precisa se arriscar um pouco, a vida recompensa um pouco de ousadia. - ela permaneceu onde estava, sem mexer um centímetro de músculo.
- Além de medrosa, você é burra. Sabia? Não percebe as asas começando a crescer nas suas costas, coçando a superfície da sua pele? - sim, claro que ela percebia. Nada tinha de burra, mas fingir que era lhe poupava uma série maior de questionamentos. De forma geral, as pessoas exigem mais de quem é inteligente. Ser ignorante pode ser uma bênção, na maior parte do tempo.
Ela sabia que as asas estavam ali, e eram, inclusive, lindas - com penas largas e mais brancas que o próprio branco. Quando elas adquiriram um tamanho razoável, ela se arriscou em um pequeno vôo. Em uma noite de calor, a lua parecia explodir de madura no céu, como uma fruta muito doce a ponto de cair da árvore. Tanto se inclinou pelo beiral da janela que estava prestes a cair, e então, tinha duas opções: ceder à gravidade ou voar. Pareceu-lhe tão simples a segunda opção, e conseguiu ir um pouco longe no céu escuro, com suas pequenas e infantis asinhas. Vira a lua de perto: e nunca se esqueceria daquela sensação.
Agora, vendo seu Coração ali à sua espera, estendendo-lhe a mão e lhe encorajando, sentiu-se frágil de novo. Não porque tivesse medo de não saber voar - aprenderia rápido, era da sua natureza - mas porque tinha medo de gostar além do que devia. Tinha medo da entrega. E se se ferisse? E se descobrisse que suas pequenas asas não seriam o suficiente para um vôo daquela grandiosidade? Ela era tão pequena.
E seu Coração era tão grande. O Coração dela era enorme. E teimoso.
- Menina, assim me faz perder o pouco de paciência que tenho. Bem sabes como já fui oco. Agora que desejo preencher-me de felicidade, sente medo? Estou dizendo: você é burra. Vem comigo, bate as asas, é hora de voar dessa concha onde você mora. - estendeu a mão, mais uma vez.
À sua frente, entre ela e o Coração - que pairava no ar como um beija-flor, batendo suas pequenas asinhas cor-de-abóbora, subindo e descendo um tiquinho a cada movimento, no céu azul - havia um parapeito. Seu pé esquerdo estava apoiado nele, mas o direito estava firmemente plantado no chão.
Lembrou-se, então, de um dia, onde esteve na cozinha descongelando em banho-maria sua porção de Verão. Fazia um frio congelante dentro de seu mundo, mas ela reuniu todas as forças que tinha, e fabricou um pouco de Verão para si. Muito rapidamente, ele congelou, e isso a abateu por algum tempo. Mas ela sabia se reerguer quando era necessário, e ficou ali, de barriga no fogão, atiçando o fogo para que não apagasse, e vendo o Verão irradiando sua luz quente e laranja pela cozinha.
E foi aquele calor vermelho que dera asas ao seu Coração. Sentiu as cócegas dele quando suas asinhas cor-de-abóbora nasceram, e sorriu. E agora, ali estava ele, tentando retribuir o favor: afinal de contas, ele só não morrera porque ela não deixara. Não estava sendo burra - estava sendo ingrata.
Ela tirou o pé direito do chão e colocou ao lado do pé esquerdo, sobre o parapeito. Ficou na ponta dos pés. O Coração se aproximou devagar, com a mão ainda estendida - ele sabia que ela era arisca, como um bichinho ferido, e sempre movia-se lentamente perto dela. Ela esticou o braço direito, e as pontas dos seus dedos encostaram nele.
- Menina, desculpe, mas você precisa voar para chegar até mim. - e se afastou, enquanto ela lentamente caía no buraco existente entre o parapeito e o céu, com o braço ainda estendido. Sentiu seu sangue subir, seus olhos se arregalarem, e aquela absoluta certeza de que seria abandonada à queda e ao vazio. Aquele frio no estômago que sentimos quando caímos em um sonho.
Caiu por alguns segundos, que pareceram horas. O medo aumenta a proporção de tudo. E pelos mesmos segundos-horas, acreditou que estava perdida. "Ah, esse é o fim!". E quando fechou os olhos, pensou no Verão: nas cores quentes, no calor que abraça a alma, na felicidade que seu Coração sentiu, naquela esperança que desabrochou dentro dela como uma flor muito suculenta.
Ei, espera, ainda posso ter tudo isso. Tenho asas, não tenho?
E porque ela acreditou que podia, ela voou.
1 Comments
Oi, Ruh!
ResponderExcluirAdorei a maneira como a qual você deixou o texto bastante leve e gracioso. É engraçado o quanto essa coisa de asas abra um leque de pensamentos. Eu, enquanto lia, fiquei imaginando que a menina precisava abrir as asas para voltar a sonhar e a acreditar em seu sonho. Acho que voar é uma maneira de nos desprender de nossa realidade mundana e adorei o fato de você brincar com o receio e a coragem. Adorei a frase final, me lembrou muito daquela frase da Clarice: "E porque acreditava em anjos, eles existiam". Mas aposto que você quis remeter a essa frase, né? (Conhecendo você como te conheço, hehe). Parabéns. Mais uma vez, um texto impecável e incrível!
Love, Nina.
http://ninaeuma.blogspot.com/