Especial 9 Anos de Perplexidade e Silêncio | Escrever é um inferno, por Diego Guerra

 

Como estamos no mês especial de comemoração dos nove anos do Perplexidade e Silêncio, convidei meu amigo escritor (e ex-vizinho) Diego Guerra para compartilhar conosco sua experiência com a escrita e com a literatura.

Diego Guerra é formado em Produção Editorial pela Anhembi Morumbi e em roteiro pela Academia Internacional de Cinema. Trabalha como designer e é fã de literatura fantástica e romances históricos. Passou os últimos quinze anos escondendo suas obras nas gavetas, mas resolveu que já estava pronto para contar suas aventuras. Autor do "Teatro da Ira", "A Lenda do Mastim Demônio", "O Gigante da Guerra", além de diversos contos para antologias e artigos sobre literatura fantástica e dicas de escrita criativa.
Ele também tem um blog bem legal e recomendo o post "Faz sentido reeditar Monteiro Lobato sem os trechos racistas".
E eu, pessoalmente, adoro o artigo dele "Existe preconceito com a literatura fantástica brasileira?" sendo, eu mesma, uma escritora de fantasia.
Para comprar os livros do Diego Guerra, clique aqui
facebook ou instagram: @autordiegoguerra.

Escrever é um inferno

Não vou mentir para ninguém. Ser escritor no Brasil não é fácil. Talvez não seja fácil em lugar nenhum do mundo, mas só posso dizer pelo que eu vejo por aqui. Ser escritor no Brasil é uma tarefa delegada aos privilegiados ou aos insanos. Às vezes aos insanos privilegiados também. Absolutamente tudo joga contra e se alguém estiver pensando em começar essa jornada, é bom entender os desafios.

Quando eu aprendi a ler e escrever, eu sabia que queria fazer aquilo para o resto da minha vida. Não tinha ideia do que seria minha profissão, nem de como funcionava aquele negócio de pagar contas, mas eu tinha absoluta certeza de que tinha encontrado meu lugar no mundo. A partir daquele momento, eu não parava mais de escrever. Enchia cadernos, folhas soltas, agendas velhas. Qualquer pedaço de papel servia para engolir histórias. Escrevia qualquer coisa que me vinha a cabeça. Relatos sobre o dia, perguntas sobre a natureza. Rimas infantis e minhas próprias versões de histórias que eu via na televisão.

À medida em que eu ia crescendo - e as chances de me tornar um astronauta arqueólogo com especialização em mecatrônica iam misteriosamente diminuindo - chegava a hora em que eu precisaria decidir como ganharia os cascalhos pelo resto da minha vida, afinal eu precisava ficar rico para construir minha própria batcaverna. Veio então a ideia de que eu poderia ficar rico escrevendo filmes, vendendo livros e outras coisas assim. Eu era relativamente bom naquilo, ou pelo menos minhas professoras me fizeram acreditar que sim. Nos anos de 1990, haviam poucas opções para quem quisesse ganhar dinheiro estudando. Não havia a profissão de escritor. Havia os profissionais de outras áreas que por acaso também escreviam. As escolhas de formação se limitavam ao curso de letras ou jornalismo. Uma me parecia demasiadamente acadêmica, outra me parecia escandalosamente factual e ambas prometiam uma vida dura, cinzenta e cheia de tarefas cansativas.

A época do vestibular chegava e eu andava cansado de ouvir que não ia chegar a lugar algum escrevendo. Meu pai insistia para que eu fizesse publicidade, com garantia certa de emprego com seus contatos em agência, mas eu não conseguia me livrar da paixão por histórias, filmes e livros. Foi quando encontrei um curso chamado Produção Editorial. Era o mais próximo que eu podia chegar de um livro, sem me tornar personagem dele. Já faz quase vinte anos em que me tornei editor, técnico de roteiro, designer, publicitário, cinegrafista, produtor gráfico e ilustrador. Também fui jardineiro, office boy, faxineiro e barman e nenhuma dessas profissões conseguiu matar meu amor pela literatura. Na maioria dos casos, elas apenas a alimentavam.

Eu já me sentia velho quando desisti de escrever. Não foi uma escolha consciente, foi algo que aconteceu. Depois de tentar emplacar um livro de fantasia em algumas editoras receber um sonoro “HaHaHa” na minha cara, eu vinha tentando a algum tempo me tornar um escritor sério, o que também não tinha dado certo. Muita coisa do que eu escrevia era autobiográfica e, além do desprezo geral pela minha vida absolutamente comum, a única coisa que aqueles textos conseguiam fazer era machucar as pessoas à minha volta. Escrever foi lentamente se tornando um pecado que deveria ser cometido em segredo.

Tenho distimia, o que pode ser classificado como uma forma branda de depressão. Na prática,  a distimia me diz o tempo inteiro que o mundo ao meu redor é uma merda, que ele não faz sentido e que as pessoas estão aí apenas para me irritar. Foi não-escrever que me deu dimensão do tamanho do problema, porquê escrever era o único instante em que eu me conectava com meu eu verdadeiro. Se o mundo já era uma merda e cheio de pessoas irritantes antes, logo ele foi se tornando mais e mais cinzento. Eu não sabia na época o que estava errado, mas isso não me impediu de dinamitar tudo ao meu redor, destruindo qualquer pessoa que estivesse a menos de cinco quilômetros de distância. Foi um início de uma espiral de entropia que só terminou quando eu saltei de um mezanino no meio de uma festa, completamente bêbado, e quebrei a minha perna.

Não era o fim daquela loucura, mas era o começo da cura e ela começou comigo de cama por três meses, olhando para o teto e tentando entender como retomar o controle das coisas. Foi quando eu voltei a escrever e foi quando as coisas voltaram a fazer sentido. O passo seguinte foi procurar ajuda profissional, o que eu aconselho de verdade a qualquer um que se sinta sobrecarregado com este mundo. Com o tempo veio o diagnóstico de distimia e hoje com acompanhamento e medicação a vida está bem sob controle (exceto pela pandemia).

Com tempo de sobra e pouca vontade de pensar sobre a realidade, resolvi me entregar aos mundos fantásticos. Escrevi a primeira versão do "Teatro da Ira", online, publicado quinzenalmente em um blog. Tinha desistido de publicar. Escrever era o que me bastava, então fui pego bastante de surpresa quando duas editoras se mostraram interessadas em publicar a história. Entre uma e outra, escolhi a Editora Draco, que se tornou a casa das "Chamas do Império" desde então, além de participar da antologia Duendes, Contos Sombrios de Reinos Invisíveis e Vikings Nas Palavras dos Skalds e onde eu
espero ainda ter uma longa carreira.

É neste ponto que eu preciso fazer um alerta para lembra-los de como eu iniciei esse texto. Essa não é uma história de ascensão e vitória. Ter sido publicado por uma editora não tornou a vida mais fácil e se você acha que é tudo o que precisa para fazer sucesso, você não estava prestando atenção. Cada gênero literário do mercado brasileiro tem suas peculiaridades, mas se tem algo que une a maioria deles é o fato de que o brasileiro lê muito pouco. Sei que você não vai acreditar em mim, se você está lendo esse texto é muito provável que seja tão aficionado pela leitura quanto eu, mas a média de leitura no Brasil é de 4,95 livros por pessoa ao ano (dados de 2020)
Mesmo tendo publicado cinco livros, a conta nunca fechou e eu posso dizer com toda a certeza que se você está pensando em ser autor em busca de fortuna, o tráfico e a prostituição são um melhor caminho (poderia sugerir também a política, mas é preciso manter um mínimo de decência). Na ponta do lápis, o que eu já recebi pelos livros vendidos nunca pagou o que eu gastei com estudos e cursos. Isso serve tanto para os livros publicados por editoras tradicionais, quanto pelos meus projetos independentes. A conta sempre fecha no vermelho. Insistir é pura teimosia.

Não vou dizer que seja impossível viver de venda de livros no Brasil, mas eu não conheço muitas pessoas que conseguiram isso e a maioria deles fica em nichos bastante específicos. A grande maioria dos autores paga as contas de outra forma e guarda os trocados para reinvestir nesse sonho maluco que é ser autor. É um engano achar que o autor que conseguiu uma editora deixou de ser independente. Boa parte da venda do livro por aqui ainda depende bastante do próprio autor. Frequentar eventos, dar entrevistas, participar das mídias sociais, gerar conteúdo interessante e gratuito, isso tudo sem falar nas coisas mais básicas como vender, receber, embrulhar e despachar os próprios livros, só para garantir que o leitor consiga a sua assinatura. Todo esse trabalho para (na melhor das hipóteses) receber 10% do valor final do livro dali a um ano. Não é, nem de longe, a garantia que você precisa para pagar o aluguel.

Quando fui convidado pela Rúbia Dias a escrever esse artigo, pensei bastante sobre o tipo de mensagem que eu queria transmitir. A maioria das pessoas gosta de se vender como uma história de sucesso e você vai encontrar muita gente esbravejando sobre como ficar milionário escrevendo, ou alardeando que vendeu 25.000 cópias e teve os direitos do livro comprados pela Disney. As pessoas gostam de histórias de sucesso porquê elas representam uma esperança de escapar da nossa realidade e eu entendo, de verdade, o quanto isso é importante, mas posso garantir que as coisas não funcionam deste jeito e eu resolvi que iria escrever a verdade.

Se a verdade te fez pensar em desistir de escrever, se alguma coisa que eu te disse te fez vacilar sobre se vale ou não vale a pena tanto esforço, eu te faço uma sugestão sincera e cheia de amor: Desista. Digo isso, sem raiva ou rancor, pelo seu bem e para que você encontre o que realmente faça a sua felicidade.

Escrever é um comprometimento. Vai te roubar o tempo com os amigos, com a família, vai te deixar acordado de noite e vai te obrigar a fazer três refeições sobre o teclado se você se lembrar de comer. Escrever vai te fazer assistir cada filme do ponto de vista técnico, ler cada livro tentando prever o que acontecerá na próxima sentença. Escrever vai te tornar um bisbilhoteiro sempre atento na conversa dos outros na rua e em um fofoqueiro, que transforma os melhores causos em história. A partir do momento em que você se compromete com a literatura, tudo o que você fizer, vai se tornar uma nota mental sobre uma história, um personagem, uma cena. 

O escritor escreve o tempo todo, mesmo quando não está escrevendo. Eu, sinceramente, não entendo porquê alguém escolheria ser escritor.

Sentiu raiva do que eu disse? Que bom. É sinal que você está prestando atenção e que entendeu o principal. Você só vai sobreviver a essa loucura se entender que escrever não é uma questão de escolha. É uma necessidade. Se sabendo de todo o sacrifício você ainda tem vontade de continuar escrevendo, parabéns! Você encontrou sua vocação.
Para você que assumiu esse compromisso, eu tenho apenas duas advertências sobre o caminho daqui em diante. A primeira é que as pessoas vão sempre tentar te fazer desistir, elas não fazem isso por mal, apenas porquê se preocupam. A segunda é que não é porquê escrever não seja uma escolha que você não tem opção sobre se deve ou não publicar. Lembre-se: escreva para você, publique para os outros. E quando isso acontecer (e eu torço para que isso aconteça sem que você precise quebrar uma perna), tenha certeza de que você receberá o justo por isso. Você não vai enriquecer, mas isso não quer dizer que todo o seu trabalho não tem valor. Garanta que ele seja o melhor possível.

Certo, talvez eu tenha esquecido o maior e mais importante conselho de todos:
Escrever é um inferno, então divirta-se.

3 Comments

  1. Cara eu sou muito fã do Diego está no meu top 3 de autores favoritos.

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  2. É bom ouvir alguém que diz o mesmo que eu. Quando dei o meu conselho para os autores iniciantes em uma entrevista ("Se puder desistir, desista enquanto é tempo. Se não conseguir, então é um escritor, prepare-se o melhor que puder, vai precisar disso e muito mais") as pessoas me olharam desconfortáveis. Acho que sinceridade não é bem vista, as pessoas querem frases motivacionais. Ganhar dinheiro com literatura é possível, muitos ganham com revisão, editoração, diagramação, capa, design editorial, curso de formação, venda de livros. O autor é quem menos ganha, quando ganha, a menos que faça outras coisas para manter o vício. Mas, como já disse na mesma entrevista, eu não consigo me imaginar sem escrever. Se algum dia parar, vai ser de publicar, aí quem perde são os outros, eu vou continuar a ler as minhas histórias e me deliciar com elas.

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