A estranheza de ler um livro narrado em segunda pessoa

 


Não sei vocês, mas eu nunca tinha lido um livro narrado em segunda pessoa até me deparar com "A Quinta Estação" de N. K. Jemisin. Eu sequer tinha pensado na possibilidade de escrever uma história com um ponto-de-vista assim. Já faz um tempo que terminei a leitura e estou, até agora, tentando digerir esse novo estilo de escrita. Neste post, falarei sobre isso e, também, farei uma breve resenha sobre o livro em si.

Primeiro, vou explicar um pouquinho o que é essa tal narração em segunda pessoa.
A grande maioria dos livros é escrita em terceira pessoa, ou seja, os fatos são narrados na conjugação da terceira pessoa do singular ou plural - "Eles acenderam uma fogueira", "Ela entrou na cidade carregando uma mala pesada", "Ele matou um homem hoje de manhã". É a estrutura de narrativa mais comum pois é a mais simples e efetiva, sobretudo em histórias com muitos personagens e acontecimentos.
Depois, temos a narração em primeira pessoa, normalmente reservada para enredos mais internos e introspectivos, ou quando o autor quer que o leitor se conecte mais profundamente com a jornada do herói. Então lemos coisas como "Eu acendi uma fogueira", "Entrei na cidade carregando minha mala pesada", "Matei um homem hoje de manhã". Até aqui tudo bem.

Na narração em segunda pessoa, o autor tem o objetivo de, literalmente, colocar o leitor dentro da história, como se fôssemos um dos personagens. Não é como quando o autor faz perguntas para o leitor, quebrando a quarta parede da leitura (o que Jane Austen fez várias vezes). É algo como "Você acendeu uma fogueira", "Você entrou na cidade carregando uma mala pesada", "Você matou um homem hoje de manhã". Sendo eu mesma uma escritora, fiquei imaginando quão difícil manter uma narrativa inteira desse jeito, prestando atenção a cada pronome/detalhe e, ao mesmo tempo, tendo que fazer o leitor SER um dos seus personagens.

E assim chego em "A Quinta Estação" de N. K. Jemisin. O cenário é um futuro aparentemente muito distante do nosso, onde o mundo foi destruído e reconstruído várias vezes, predominantemente por eventos naturais como erupções de vulcões e terremotos. Essas várias eras do mundo, chamadas de Estações, foram dando origem a seres humanos modificados como, por exemplo, os orogenes, que tem o dom de controlar a terra a partir das suas emoções (provocando tragédias quando bravos) ou os "comedores de pedra", cujo dom já é auto-explicativo.
Nesse contexto, "A Quinta Estação" começa contando a história de Essun que, um dia, encontra seu filho morto pelo próprio pai e sua filha mais velha está desaparecida. Sendo ela uma orogene, diante da fúria e do pesar que sente, ela provoca um enorme terremoto, matando diversas pessoas no processo, e foge, não apenas para não ser incriminada pelo que fez mas também para encontrar o(ex) marido e se vingar da morte do filho.
E é exatamente Essum que N. K. Jemisin escolheu para ser a narradora em segunda pessoa. Achei fácil entender essa escolha da autora (e provavelmente do editor), afinal, a grande maioria dos leitores se identificaria quase que imediatamente com o conflito e com a dor de Essum. Então, antes da narração em segunda pessoa começar de fato, a autora narra um ou dois capítulos de Essum em terceira pessoa e aí, de repente, PA!, "você fez isso, você fez aquilo, você se sentiu assim ou assado".

Não gostei de "A Quinta Estação", independente da narração. Há dois plot twists, que parecem ser muito populares entre os leitores, mas mesmo eles - apesar de bem escritos e inteligentes - não me fizeram ficar interessada pelo fim da história. Para mim, o grande problema foi que não há contextualização deste mundo criado por Jemisin e eu não entendia nada, nem as regras, nem a sociedade e muito menos as premissas dele. Conforme a leitura corria, eu me percebia mais e mais desconectada da obra e, várias vezes, quase abandonei a leitura.

O livro não é inteiramente narrado em segunda pessoa, apenas os trechos relacionados a Essum. Temos também as histórias de Syenite e Demaya, estas narradas na tradicional terceira pessoa. Syenite é uma espécie de aia da Margaret Atwood que copula com homens para reproduzir e Demaya é uma criança orogene, que estava abandonada num celeiro, e é adotada por um Guardião que vai treiná-la a usar seus poderes.
Percebi o quanto eu não estava gostando na narração em segunda pessoa quando os outros capítulos chegavam. Eu os recebia com alívio. Li em várias resenhas que a narração em segunda pessoa ajudava o leitor a ficar mais imerso na história, mas comigo aconteceu o oposto. Eu peguei é ranço. Esse "você fez isso, você fez aquilo" foi me irritando muito e eu me pegava reagindo, pensando coisas como "Eu não fiz nada disso", ou "Eu jamais responderia dessa forma" até o nivel de um "Você não manda em mim, eu faço o que eu quiser". 

Eu só não cheguei a odiar o livro e a narração em segunda pessoa porque, como escritora, admirei a habilidade técnica necessária para escrever algo assim. Já tive experiência de escrever uma trilogia inteira em terceira pessoa e agora estou escrevendo um livro em primeira, e sinto na pele, todos os dias, a dificuldade técnica que essa mudança exige, não apenas na escrita em si, mas no desenvolvimento da plot, no outline da história, nas cenas e diálogos... Em segunda pessoa então, eu jamais conseguiria manter o ritmo (e a motivação) por algo que fosse maior do que um conto.

Concluindo, eu não recomendo esse livro em si, mas acho que vale a leitura dele só pela curiosidade de encarar e conhecer esse formato diferente.
Você já leu algum livro assim? Deixe aí nos comentários como foi a experiência para você!

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