Sugestão de Leitura | Objetos Cortantes, de Gillian Flynn


Poucos escritores podem se orgulhar de iniciar suas carreiras com um livro de tirar o fôlego. Gillian Flynn, hoje conhecida pelo sucesso (com direito a filme) de "Garota Exemplar", em seu primeiro livro, "Objetos Cortantes", já mostra seu tom adulto, decadente e violento. 

Alguns elementos deste primeiro livro são autobiográficos. A personagem principal, Camille Preaker, é jornalista, assim como Gillian antes de tornar-se escritora profissional. Além disso, a estória se passa no estado de Missouri, onde Gillian nasceu e foi criada. 

Publicado em 2006, "Objetos Cortantes" conta a estória de Camille Preaker, que precisa retornar à sua cidade natal, Wind Gap. para cobrir a matéria dos assassinatos de duas crianças, Ann e Natalie. Jornalista medíocre, Camille vê a oportunidade de mostrar serviço no jornal de Chicago, onde mora atualmente, pois acredita que trata-se de um serial killer.

Logo fica claro porque Camille não está feliz em retornar para casa. Sua mãe, Adora, é uma mulher pedante e preconceituosa da classe alta de Missouri, a trata com indiferença e desdém. Seu padrasto, Alan, é praticamente um fantasma, completamente manipulado por Adora. Além disso, paira sobre a família as repercussões da morte de Marian, irmã mais nova de Camille que faleceu ainda criança, depois de um longo e sofrido período de doença. Adora deixa claro que preferia que Camille tivesse morrido no lugar de Marian.

A figura mais interessante da família Preaker é Amma, a meia-irmã de Camille. Adora a teve para substituir Marian e, na frente da mãe, Amma é submissa, doce e inocente. Porém, Camille logo descobre que Amma é a garota mais popular de Wind Gap e é famosa pelas suas crueldades, pelo uso abusivo de drogas e álcool e pela promiscuidade (tudo isso aos treze anos). Esta dupla personalidade de Amma é, ao mesmo tempo, intrigante e irritante. Camille não a julga pois, ela mesma, quando jovem, já era alcoólatra e tinha uma vida sexual bastante intensa, perdendo a virgindade numa relação sexual com quatro rapazes, ao mesmo tempo, em uma festa.

O conteúdo pesado e adulto do livro não pára por aí. Camille enfrenta problemas com drogas e com álcool, é infértil e usa o sexo como refúgio. Além disso, ela escreveu palavras na pele de todo o seu corpo, fazendo referência ao nome do livro, com o uso de objetos cortantes: sumir, geladeira, vagina, buraco, fraca, hidratante - as palavras são inúmeras e inesperadas, mas nunca aleatórias. Ela não deixa ninguém se aproximar ou vê-la nua e, por isso, há mais de dez anos não tem uma relação sexual nem um relacionamento amoroso relevante.

Também não é difícil perceber os elementos feministas espalhados ao longo do enredo - de diálogos a desconstrução de estereótipos femininos - já que Gillian é, declaradamente, atuante no movimento feminista. Assim, ela criou uma estória com predominância de personagens femininas, todas elas más, cruéis, promíscuas e imorais, utilizando do espaço que a literatura possui para expandir os horizontes dos papeis das mulheres, longe das mocinhas inocentes que não sabem se proteger e precisam de príncipes encantados. Só isso já torna a leitura algo muito interessante, afinal, não é sempre que nos deparamos com serial killers mulheres. O enredo é dominado pelas mulheres e os homens, quando aparecem, ou são inúteis ou são fracos. Gillian Flynn inverte os papéis na sua narrativa, dando destaque às personagens femininas.

Para investigar os assassinatos de Ann e Natalie, Camille se vê obrigada a se aproximar das pessoas mesquinhas e arrogantes de Wind Gap, o que lhe causa muita angústia. Ela precisa se encontrar com antigos colegas de escola e, também, acompanhar Amma nas suas aventuras esquisitas pela cidade. A polícia local, inútil, não a ajuda em absolutamente nada, assim como as famílias das vítimas, que se negam a dar uma matéria para um jornal. Camille é humilhada, ofendida, agredida e ignorada, o que combina com sua personalidade autodestrutiva. 

Fiquei bastante envolvida com a trama e com a atmosfera de decadência e depravação da estória. Adora, Amma e Camille são perturbadas, emocionalmente instáveis e, cada uma a sua maneira, estão numa espiral de desmoronamento. Adora é uma mãe doentia, que causa enjôo e fúria; Amma desperta inveja e, ao mesmo tempo, pena; Camille é uma personalidade fraca que se finge de forte. Elas são um trio incrível para este thriller.

Como pontos negativos, destaco apenas dois.
O primeiro é a quantidade de elementos em Camille que não conseguem ser explorados de forma adequada ao longo da estória: automutilação, alcoolismo, promiscuidade, infertilidade, dramas familiares, luto pela irmã. Na minha opinião, Gillian poderia ter reduzido o número de características da protagonista para poder explorá-los e aprofundá-los mais.
O segundo ponto negativo é o ritmo do trecho final da estória. Quando o(a) serial killer é descoberto por Camille, os eventos se aceleram e se encaminham para o fim de forma apressada, destoando do tom mais lento e cauteloso do restante da obra.  O meio da estória, que explora predominantemente a relação de Camille com Amma, poderia ter sido abreviado e o fim, aumentado, para que o ritmo dos acontecimentos ficasse mais uniforme.

Em relação ao desfecho do mistério dos assassinatos, não fiquei surpresa, mas também não fiquei decepcionada. Na metade do livro, já tinha minhas suspeitas, que se confirmaram. Por isso, o leitor não pode esperar um plot twist, mas pode esperar um enredo bem amarrado e com um clima misterioso.

O grande trunfo deste livro é a reflexão sobre a maldade e sobre autossabotagem, e não os assassinatos em si. O leitor não deve esperar um livro sobre crimes, pensando em Sherlock Holmes ou Agatha Christie, porque fica claro que o foco não é esse, e sim, a essência podre das pessoas e de toda uma comunidade, além dos seus impactos através de várias gerações. Gillian traz uma visão crua e pessimista do ser humano e, bem, eu gosto disso.

Avaliação do Perplexidade e Silêncio:

1 Comments

  1. Eu acho que a história é muito legal, adorei! Gillian Flynn tem o dom de ser uma escritora atual que consegue me convencer a ler seus livros através apenas da sinopse. Isso é um fato. O livro é bem escrito, todo em primeira pessoa e apresenta todos os acontecimentos e personagens sob a dimensão de Camille. A estrutura narrativa é bem montada, não sobra espaço para confusão e o desfecho é levemente deduzível, contudo até o último momento torcemos para que estejamos errados. Por outro lado a nova série Objetos cortantes estreou no domingo na HBO. Produção é inspirada em livro homônimo de Gillian Flynn. No primeiro episódio, Objetos cortantes vai aos poucos inserindo a história, que envolve tanto o mistério dos assassinatos quanto o mistério envolvendo o passado de Camille, uma mulher receosa da mãe, assombrada pelos fantasmas do passado que envolvem a morte de uma irmã, viciada em bebidas alcoólicas e também em automutilação. Mesmo assim, isso não torna a série lenta. Pelo contrário, ao entregar pouco, a produção faz com que o espectador queira seguir nessa história, que promete muitas reviravoltas. Visualmente, Objetos cortantes também é muito interessante. As cores extremamente fortes das cenas contrastam com a atmosfera de mistério que envolve a história. Outro ponto alto são os debates que a minissérie vai abordar como a relação entre mãe e a filha e, claro, a automutilação, algo que atormenta a vida da protagonista.

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