Desafio dos Contos de Fada | 1/12 A Pequena Sereia


O blog Constantemente Inconstante teve uma idéia genial: criou sua própria versão dos 12 Trabalhos de Hércules, como se o mito grego se passasse nos dias de hoje. A partir disso, criei o Desafio dos Contos de Fada, onde escreverei, mensalmente, a minha versão dos contos de fada que eu gosto, durante um ano. O desafio não pretende reescrever o conto de fada integralmente, mas propor trechos e passagens de como eles seriam, se eu os escrevesse.


1/12 - A Pequena Sereia
(Vídeo com a estória original aqui).

Undine - Sina Domke
Uma luz clara e azulada descia curvilínea em meio às profundezas da água, sinalizando que mais um dia amanhecera lá fora. A claridade, dançante, movia-se de acordo com a maré, criando pequenos raios que atingiam os corais. Ela estendia o dedo longo e fino, tentando, mais uma vez, tocar aquela luz, que parecia mais sólida e mais real do que qualquer coisa que existia ali no fundo das águas.

Suas irmãs passaram agitadas por ela, ansiosas para o banquete que haveria à noite para Netuno. Ela, no entanto, não poderia encontrar-se mais distante daquele estado de espírito e, aliviada por elas não terem notado sua ausência, nadou em direção ao lado oposto. A luz azulada tornou-se mais alaranjada, sinalizando que o Sol estava caminhando para seu lugar no céu.

Uma pontada de ansiedade tomou conta de seu coração: e se ela nunca pudesse admirar o céu, ou o Sol, ou como era a noite sem a pressa de voltar antes de ser descoberta? Se passasse o resto da sua vida, seus trezentos e poucos anos de vida, apenas conhecendo a água, não seria ela incompleta para sempre? Seria: era isso que seu coração lhe dizia, que seria sempre pela metade, se não se permitisse descobrir o que mais havia no mundo além de mar e anêmonas e algas e peixes.

As sereias, ao completarem quinze anos, podiam subir à superfície e espiar um pouco as coisas. E podiam repetir este pequeno ritual todos os anos, no dia de seu aniversário. Mas ela achava aquilo muito, muito pouco, e não ficava contente. Não era um presente, e sim, um prêmio de consolação, que não chegava nem perto de acalmar sua curiosidade.

Sem que percebesse, começou a subir em direção à superfície. Desviou de um ou outro olhar conhecido, com receio de que fossem dedurá-la à Netuno e, entre um esconderijo num coral aqui e noutro ali, nadou para o Sol e o céu azul, bem acima de sua cabeça. O mar estava silencioso, sem navios à vista. As gaivotas voavam longe, no horizonte, livres com sua imensidão inexplorada de mundo pela frente. Foi então que ela sentiu a primeira pontada de inveja: ela estava presa à água, para sempre, sem a possibilidade de conhecer montanhas e vales, jardins e flores, árvores e pântanos, e todos aqueles lugares misteriosos que ela ouvira em estórias de pescadores bêbados na beira de suas embarcações.

Porque, sim, eventualmente, ela ia para a superfície escondida, e quando um navio passava por perto, ela o seguia e ouvia atentamente os diálogos dos marujos, e logo percebeu que era principalmente à noite que eles resolviam contar as lendas de seu povo. Ela ouvia fascinada, tentando imaginar coisas que nunca vira.

E uma vez a inveja sentida, ela imediatamente percebeu que estava enroscada nela, como seus cabelos às vezes se enganchavam nas plantas marinhas, e que seu coração só sossegaria quando pudesse andar pelos destinos desconhecidos daquele mundo enorme e misterioso. Queria sentir a terra, o calor, a sede e o vento. Queria entender de onde os navios vinham e para onde iam. Queria ser livre, enfim.

Naquela noite, quando ela precisou comparecer ao banquete de Netuno, evitou o máximo que pôde a companhia efusiva de suas irmãs. As demais sereias estavam alheias à sua presença, como sempre - e ela preferia assim. Não poderia compartilhar com ninguém seu desejo de explorar o mundo, nenhuma sereia a entenderia. Nenhuma sereia era como ela. Depois de garantir que seu pai a havia visto circulando pela festa, ela retirou-se para sua pequena caverna, onde colecionava objetos do mundo lá fora que eram perdidos ou jogados no mar. E, naquela noite, ela tomou a maior decisão de sua vida: deixaria de ser sereia, nem que fosse por um dia, nem que fosse somente para ver o continente ou a ilha mais próximos e retornar ao mar, mas não suportaria viver presa para sempre embaixo daqueles quilômetros de água.

E não se importaria com os sacrifícios que tivesse que fazer. Ela aceitaria todos, de bom grado. Então, enrolou seus pertences mais relevantes em uma alga e, escondida, foi em busca de ajuda. Ouvira falar de uma senhora que habitava as partes mais profundas do mar, uma bruxa ou algo do tipo, que sabia fazer todo e qualquer tipo de feitiço. Ela nunca acreditou muito nesta história, mas era sua melhor chance. E, sem pensar muito, foi ao encontro dela, preparada para a grande mudança da sua vida entediada.

2 Comments

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Eu adorei a ideia! Juro, não é puxação de saco, mas finalmente encontrei um bom blog. Eu venho procurando blogs estilo o seu há dias e não encontro. Eu adorei, de verdade. E sobre o conto, me tire uma dúvida: você postará uma vez por mês a continuação de A pequena sereia ou irá postar sobre outros contos de fadas também?
    Gostei da sua escrita, muito mesmo. Vou acompanhar o blog =)
    Beeijo
    http://www.estoriasecafe.com/

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