Sugestão de Leitura | Alegria Mansa, de Clarice Lispector




A autora
Vamos partir do princípio que Clarice Lispector não foi banalizada. Vamos fingir que a internet ainda não existe e encontramos as palavras dela em preciosos livros de velhas bibliotecas. Comecei a escrever com 16 anos (e lá se vão treze anos em busca da perfeição) e, aos 17, me deparei com Água Viva: um livro sem pontuação gramatical, sem estória, sem começo, sem fim - somente um grande e caótico meio, onde Clarice despejava pensamentos e sentimentos. Caí em sua teia e nunca mais saí, porque ela é uma das poucas escritoras que fala sobre a angústia com magia e mistério, como se fosse algo quântico e quase espiritual. Ler Clarice é difícil, exige paciência e esquecimento das regras de Gramática, exige força de vontade para não desistir no meio das frases intrincadas. Mas vale a pena. Como vale!

Por que escolhi este texto?
Alegria Mansa nunca mais saiu de mim depois que li. Até hoje, em dias ensolarados e felizes, me vêm à mente que estou sentindo esta alegria mansa, verdinha alface, de que ela tanto fala. Sentir alegria é uma batalha: não vem fácil. E também não vem sempre. Para quem está acostumado à melancolia, sentir-se feliz nos deixa perplexos. E silenciosos!

A alegria mansa (trecho) - Clarice Lispector

Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda tentar definir é uma luz tranqüila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão diurna da dor. Não estou  tão sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de existir.
Mas estou também inquieta. Eu estava organizada para me consolar da angústia e da dor. Mas como é que consolo dessa simples e tranqüila alegria? É que não estou habituada  a não precisar de consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir , e eu não notei, e quando fui procura-la, ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento.
Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar.
Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça com a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse estado?
Percebo que, com essa pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor. Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei – e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo a Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, ou um corpo olhando pela janela. Ela é uma chuva. Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo é uma alegria mansa.

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